7.2 Coordenadas homogêneas

Vimos que a expressão

\[\mathbf{v}'=\mathbf{A}\mathbf{v},\]

onde

\[ \mathbf{v}'=\begin{bmatrix}x'\\y'\\z'\end{bmatrix},\qquad \mathbf{A}=\begin{bmatrix} a_{11} & a_{12} & a_{13} \\ a_{21} & a_{22} & a_{23} \\ a_{31} & a_{32} & a_{33} \end{bmatrix}, \qquad \mathbf{v}=\begin{bmatrix}x\\y\\z\end{bmatrix}, \]

representa uma transformação linear de um vetor \(\mathbf{v}\) no espaço vetorial euclidiano \(\mathbb{R}^3\). Podemos supor que as coordenadas de \(\mathbf{v}\) representam as coordenadas de um ponto no quadro padrão do espaço euclidiano: o ponto resultante do deslocamento da origem pelo vetor \(\mathbf{v}\). Assim, podemos usar matrizes para transformações lineares sobre pontos, além de vetores. Entretanto, essa notação não nos permite ir muito adiante. Primeiro, ela não permite diferenciar o que é a representação de um ponto e o que é a representação de um vetor. Além disso, a matriz de transformação linear no \(\mathbb{R}^3\) não é capaz de representar transformações que envolvem deslocamento de pontos. A simples operação

\[\mathbf{p'}=\mathbf{p}+\mathbf{t},\]

onde \(\mathbf{p}\) é um ponto e \(\mathbf{t}\) é um vetor, não pode ser representada como uma matriz de transformação linear na forma

\[ \mathbf{p}'=\mathbf{A}\mathbf{p},\\ \\ \begin{bmatrix}x'\\y'\\z'\end{bmatrix}= \begin{bmatrix} a_{11} & a_{12} & a_{13} \\ a_{21} & a_{22} & a_{23} \\ a_{31} & a_{32} & a_{33} \end{bmatrix} \begin{bmatrix}x\\y\\z\end{bmatrix}. \]

Felizmente, podemos contornar essas dificuldades se representarmos pontos e vetores do \(\mathbb{R}^3\) em um sistema de coordenadas homogêneas no espaço \(\mathbb{R}^4\).

Como vimos na definição de combinação afim (seção 6.2), podemos multiplicar um escalar \(a\) por um ponto \(P\), de modo que

\[ 0 P = \mathbf{0},\\ 1 P = P. \]

Um ponto \(P=(x,y,z)\) no quadro \(\{P_0, \mathbf{v}_1, \mathbf{v}_2, \mathbf{v}_3\}\) é definido unicamente como

\[ P = x\mathbf{v}_1 + y\mathbf{v}_2 + z\mathbf{v}_3 + P_0. \]

Em coordenadas homogêneas, \(P\) pode ser representado pela matriz coluna de coeficientes

\[ \begin{align} \mathbf{p}&=\begin{bmatrix}x\\y\\z\\1\end{bmatrix}, \end{align} \]

uma vez que

\[ \begin{align} P &= x\mathbf{v}_1 + y\mathbf{v}_2 + z\mathbf{v}_3 + P_0\\ &= \begin{bmatrix}x & y & z & 1\end{bmatrix} \begin{bmatrix}\mathbf{v}_1 \\ \mathbf{v}_2 \\ \mathbf{v}_3 \\ P_0\end{bmatrix}. \end{align} \]

De forma semelhante, um vetor \(\mathbf{v}=[x\quad y \quad z]^T\) no mesmo quadro,

\[ \mathbf{v} = x\mathbf{v}_1 + y\mathbf{v}_2 + z\mathbf{v}_3 + 0 P, \]

pode ser definido em coordenadas homogêneas pela matriz coluna de coeficientes

\[ \begin{align} \mathbf{v}&=\begin{bmatrix}x\\y\\z\\0\end{bmatrix}, \end{align} \]

uma vez que

\[ \begin{align} \mathbf{v} &= x\mathbf{v}_1 + y\mathbf{v}_2 + z\mathbf{v}_3\\ &= \begin{bmatrix}x & y & z & 0\end{bmatrix} \begin{bmatrix}\mathbf{v}_1 \\ \mathbf{v}_2 \\ \mathbf{v}_3 \\ P_0\end{bmatrix}. \end{align} \]

Na expressão

\[\mathbf{p}'=\mathbf{A}\mathbf{p},\]

onde

\[ \mathbf{p}'=\begin{bmatrix}x'\\y'\\z'\\w'\end{bmatrix},\qquad \mathbf{A}=\begin{bmatrix} a_{11} & a_{12} & a_{13} & a_{14} \\ a_{21} & a_{22} & a_{23} & a_{24} \\ a_{31} & a_{32} & a_{33} & a_{34} \\ 0 & 0 & 0 & 1 \end{bmatrix}, \qquad \mathbf{p}=\begin{bmatrix}x\\y\\z\\w\end{bmatrix}, \]

a matriz \(\mathbf{A}\) representa uma transformação linear no \(\mathbb{R}^4\) e uma transformação afim no \(\mathbb{R}^3\).

A transformação afim preserva a operação de combinação afim, isto é,

\[ T(aP+(1-a)Q)=aT(P)+(1-a)T(Q) \]

para quaisquer pontos \(P\) e \(Q\), e qualquer escalar \(a \in [0,1]\).

Assim como a transformação linear transforma espaços vetoriais, a transformação afim de um ponto \(\mathbf{p}\) para \(\mathbf{p'}\) equivale à transformação do quadro de \(\mathbf{p}\) no quadro de \(\mathbf{p}'\).

Com a matriz de transformação afim, conseguimos representar tanto as transformações de espaços vetoriais quanto as transformações que envolvem deslocamento de pontos.

Agora podemos representar o deslocamento \(\mathbf{p'}=\mathbf{p}+\mathbf{t}\) através de uma operação matricial:

\[ \mathbf{p}'=\mathbf{A}\mathbf{p}\\ \\ \begin{bmatrix}x+t_x\\y+t_y\\z+tz\\1\end{bmatrix}= \begin{bmatrix} 1 & 0 & 0 & t_x \\ 0 & 1 & 0 & t_y \\ 0 & 0 & 1 & t_z \\ 0 & 0 & 0 & 1 \end{bmatrix} \begin{bmatrix}x\\y\\z\\1\end{bmatrix}. \]

Em \(\mathbf{p}=\begin{bmatrix}x & y & z & w\end{bmatrix}^T\), a coordenada \(w\) é chamada de coordenada homogênea.

A escolha de fazer \(w=1\) para pontos e \(w=0\) para vetores permite diferenciar, sem ambiguidades, as operações de adição de vetor com vetor, diferença entre pontos, e adição de ponto com vetor:

  • Na adição de vetor com vetor, o resultado é um vetor (coordenada \(w=0\)):

    \[ \begin{align} \mathbf{u}+\mathbf{v}&=\mathbf{w},\\ \\ \begin{bmatrix}u_x\\u_y\\u_z\\0\end{bmatrix}+ \begin{bmatrix}v_x\\v_y\\v_z\\0\end{bmatrix}&= \begin{bmatrix}u_x+v_x\\u_y+v_y\\u_z+v_z\\0\end{bmatrix}. \end{align} \]

  • Na diferença entre pontos, o resultado é um vetor (coordenada \(w=0\)):

    \[ \begin{align} \mathbf{p}-\mathbf{q}&=\mathbf{u},\\ \\ \begin{bmatrix}p_x\\p_y\\p_z\\1\end{bmatrix}- \begin{bmatrix}q_x\\q_y\\q_z\\1\end{bmatrix}&= \begin{bmatrix}p_x-q_x\\p_y-q_y\\p_z-q_z\\0\end{bmatrix}. \end{align} \]

  • Na adição de ponto com vetor, o resultado é um ponto (coordenada \(w=1\)):

    \[ \begin{align} \mathbf{p}+\mathbf{u}&=\mathbf{q},\\ \\ \begin{bmatrix}p_x\\p_y\\p_z\\1\end{bmatrix}+ \begin{bmatrix}u_x\\u_y\\u_z\\0\end{bmatrix}&= \begin{bmatrix}p_x+u_x\\p_y+u_y\\p_z+u_z\\1\end{bmatrix}. \end{align} \]

Coordenadas homogêneas \((x,y,z,w)\) podem ser convertidas de volta para coordenadas cartesianas \((x',y',z')\) do espaço euclidiano 3D através da divisão de \(x\), \(y\), \(z\) por \(w\):

\[ (x', y', z') = \left(\frac{x}{w}, \frac{y}{w}, \frac{z}{w}\right). \]

Assim, um ponto \(\mathbf{p}\) em coordenadas homogêneas,

\[ \mathbf{p}=\begin{bmatrix}x \\ y \\ z \\ 1\end{bmatrix}, \]

corresponde, em coordenadas cartesianas, ao ponto

\[ \mathbf{p}'=\begin{bmatrix}x \\ y \\ z\end{bmatrix}=\begin{bmatrix}x/1 \\ y/1 \\ z/1\end{bmatrix}. \]

Em transformações afins expressas de forma homogênea, o valor de \(w\) será sempre \(0\) ou \(1\). Entretanto, em matrizes de transformação projetiva, \(w\) poderá assumir outros valores.

Transformações projetivas serão abordadas no próximo capítulo. Entretanto, perceba que a divisão por \(w\) faz com que um ponto \((x',y',z')\) do espaço euclidiano 3D corresponda a infinitos pontos no espaço de dimensão extra (4D). Em particular, os pontos \((sx,sy,sz,sw)\), onde \(s \neq 0\) e \(w \neq 0\), correspondem ao mesmo ponto \((x',y',z')\) do espaço euclidiano:

\[ (x', y', z') = \left(\frac{sx}{sw}, \frac{sy}{sw}, \frac{sz}{sw}\right) = \left(\frac{x}{w}, \frac{y}{w}, \frac{z}{w}\right). \]

Em outras palavras, os pontos \((sx,sy,sz,sw)\) do \(\mathbb{R}^4\) são projetados em um mesmo ponto \((x',y',z')\) do \(\mathbb{R}^3\). Esse comportamento será útil para simular o efeito de diminuição do tamanho de objetos em uma projeção perspectiva. Em particular, note que:

  • Se um objeto é formado por pontos com coordenada homogênea \(w > 1\), o objeto diminui de tamanho após a conversão para o espaço euclidiano;
  • Se um objeto é formado por pontos com coordenadas homogênea \(0 \leq w < 1\), o objeto aumenta de tamanho após a conversão para o espaço euclidiano.